sábado, 25 de junho de 2011

Chorava, chorei, choro

Chorava e não se aguentava nos cueiros. Diziam de mim desde o dia em que nasci. Não sabiam é que havia dor aqui dentro. Na boca que ardia nas coisas e pensava que o mundo fosse isso. Na barra das calças curtas aos dez anos. Nas mãos que, nervosas, labutaram entre as pernas na adolescência mal apanhada. Nas barreiras invisíveis construídas para fingir não querer o que mais se deseja. Como pode uma dor durar tanto? Abafada pelo sorriso embasbacado diante da juventude com que me deparo todos os dias, essa dor, em frêmito de gozo, que não pude compreender a tempo, não pude viver a tempo, não pude sanar a tempo, que já não sei se poderá ter alívio e que, presa, esvai-se na secura dos olhos, transborda nas palavras que me sinto obrigado a dizer para esses meninos que enxergam em mim uma moldura. Chorava e não me aguentava nos cueiros. Não sou exemplo para ninguém. Sou, isto sim, um anti-modelo. Sou aquilo do que vocês devem fugir. Sou os gestos que precisam evitar. O caminho mais longo a ser contornado. Cresci, mas amadurecer é um calvário impossível de chegar ao fim. Cresci e a dor continua aqui por dentro. Mesmo gozando em semblantes alheios. A dor está cá comigo. Ainda que virando as costas como quem cede a um rogo. A dor persiste por dentro. Voltando-me para atacar com o sexo em riste. A dor lateja mais do que nunca. Apesar de ter me desfeito em espasmos os mais belos. Não me abandona aquela dor. Assim foi que tive que dizer para aqueles que me invadiam por onde eu mais temia e mais sonhava. Chorei e não me aguentei nos cueiros. Há remédio para isso? Algum Alívio? Até hoje as narrativas com que entreteço minha tristeza. Pura ficção. Os braços musculosos do abraço. O odor equino das axilas. Delírio apenas. O vagar em cada escuro recôndito de um corpo. Maléfica imaginação. A compaixão tornada lascívia. A ofensa tornada tesão. Não há em mim uma cicatriz sequer que seja concreta. Por isso, meus filhos, meus amantes, não posso calar diante dessa figura heroica que fazem de mim e não há outra coisa a dizer em minha defesa a não ser que eu ainda choro e não me aguento nos cueiros.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Ora direis... (Epílogo)

Esquecido das falas e dos laços que o compõem, dorme tranquilamente sob a via láctea enquanto o Capibaribe, refletindo-a, aguarda o Poeta no seu último afogar de mágoas.

Ora direis... (Parte 4)

A gente bota filho no mundo e não sabe no que vai dar, doutor. Tanto que eu falava pra Zuzinha, doutor. Cansei de falar e o que ele fazia? Cuspia na minha cara com seu silêncio absoluto. Com sua estranheza. Seu orgulho de pobre enviesado. Desde sempre foi assim. Eu podia dizer que puxou ao pai, mas nem conheci aquele traste direito. Antes de saber que eu estava prenha sumiu no mundo. Na certa deve ter mesmo alguma coisa do pai. Não sei direito o que é. O olhar vazio? O peito magro de rapaz sem barba? As pernas tortas? O gosto pela cachaça? O ódio pelo trabalho? Sei é que aquela criatura era esquisita desde o tempo de barriga. Aqui dentro ele chorava, doutor. Não crê? Pois pergunte aos vizinhos velhos? Estava cochilando quando ouvi o gemido parecido com o de bicho recém-nascido. No sétimo mês de bucho. Os vizinhos disseram que ele ia ser adivinhador de destinos ou cientista. Mas não deu pra nada, doutor. Pra nada. Deve ter sido porque eu não fiz a simpatia. Tinha que guardar a primeira camisa de pagão. Sem ele saber e nunca comentar. Quando ele completasse sete anos que é a conta do mentiroso eu devia mostrar pra ele a dita camisa junto com outras iguais e perguntar qual delas foi a sua primeira. Se ele apontasse a certa, selava-se o destino. Ia ler as estrelas ou desvendar os números. Tive medo, doutor. Não quis. E tudo o que Zuzinha fez na vida foi ler malditos livros e desvendar os mistérios do alambique! Todo dia ler e beber. Ler e beber. Como é que pode isso, doutor? Lá pela hora dos pardais o desgraçado vinha cambaleando. Parecia um boneco de Olinda. A língua solta relinchando palavras estrangeiras. “Ora direis...” Ora gritando ora cochichando. Pra quem, doutor? Parecia um possesso. Que sossego eu podia ter, doutor? Me diga. Descansei quando arrumaram emprego pra ele numa adega. Acho que era isso. Uma padaria metida a besta. Sei não. Sei é que respirei aliviada por uns dias. Pensei agora ele se ajeita. Vira homem. Que nada, doutor! Aquilo ali não tinha jeito. Passou uns dias direitinho, mas depois danou-se a beber pra ir trabalhar. A levar os malditos cadernos. A dizer poesia pros clientes. Soube que uns até gostavam. O dono é que não gostava nadinha. Que podia acontecer? Só desgraça. Eu queria bem a ele, doutor. Mãe é mãe. Carrega esses fetos tortos no ventre. Nina. Carinha. Dá de comer. E o que há de ser deles a gente nunca sabe. Malditos dias em que trabalhou, doutor! Antes estivesse aqui com sua quartinha e seus cadernos. Vadio e bêbado. Escrevendo nas paredes letras que eu nunca entendi. Venha ver. Ainda na cal gasta os últimos rabiscos. Repare não que não sei ler. Nem quero, doutor. Nem quero. Pra acabar que nem meu filho? Naqueles dias chegava em casa queimado e nem olhava na minha cara. Ia pro quarto e passava a noite escrevendo nas paredes e nos cadernos. Devia estar prevendo a desgraça. A premonição e a ciência foram seus dons perdidos. Quem sabe.

Ora direis... (Interregno)

Parece que nunca atentaram para a inutilidade das gavetas. Guardamos nelas a ilusão de que nossa vida pode ser organizada. Numa, ficarão as gravatas. Noutra, os papéis de seda e os laços de fita. Entanto, surgirão objetos inclassificáveis cujo lugar não será a cômoda nem a mesa de cabeceira. Menos ainda o armário da cozinha. Tampouco o esquecimento do quarto de despojos. Haverá sempre coisa e homem para os quais não acharão nenhuma gaveta no mundo. Eles estarão lá no umbral dos acomodados pela classificação arbitrária dos compartimentos a infernizar em busca de um canto onde se encaixar e eternamente insatisfeitos com o vão onde os puseram.

Ora direis... (Parte 3)

Perdão. O moço me perdoa? Perdoe que estou bêbado e errado. Por que, moço? E a gente precisa de motivo pra beber? Triste a gente bebe. Alegre também. O time ganha a gente bebe. O time perde a gente bebe. A mulher deixa a gente bebe. Mas tem um motivo. Saudade do Zuzinha, moço. Saudade que dói até na bola do olho. Zuzinha morava no meu coração. Morava não. Mora. Zuzinha era o bêbado mais alinhado desse lugarzinho pisado pelo diabo. Cada palmo. Um inferno, moço! Olhe ao redor. Vinha todo dia com suas calças claras e seus versos brancos tomar uma com a gente. Ele mesmo dizia: cada um tem seus ópios. Nem sei o que é isso, moço, mas se Zuzinha dizia era verdade. A dona de casa com seus panos de prato e vassouras. Os homens com seus sacos pra carregar. O carro pra sair no sábado, o filho com colégio pago, prestações da casa. Menino come tijolo. Adolescente bate punheta. Gordo não vive sem comer na panela. Então por que diabos a gente não pode encher a cara de cachaça? Perguntava. Ele iluminava a gente, sabe? Eu, o Piaba e o Socó. Estudamos juntos. A cabeça das gentes três dava pra estudo não. Eu mais o Piaba e o Socó. Mas Zuzinha, moço. Zuzinha era o crânio. Ganhou concurso de redação. Apareceu em televisão dando entrevista. Era pra ele ser o exemplo de pobre saindo do lixo e ganhando salário bom. Ocupando cargo na prefeitura. A gente olhava Zuzinha e via que nem todo mundo daqui ia ser embalador de compra, moço. Ou varredor de rua. Ou camelô. Zuzinha era a esperança. Mas deu um murro nas caixas do peito de todo mundo. Nos seus dias de azougue ele xingava. Para o caralho todos vocês! Para o caralho! Não vou ser ponte de ninguém. Nem escada. Nem exemplo. Nem mártir nem herói. Cada qual com seu Fado e a última Parca que parta o fio! E ficava calado o resto da tarde com seus cadernos e sua quartinha. Quando de bom humor, era um patrício. O senhor da Ágora. Ele mesmo dizia. E a gente era sua audiência. Vinha lá do Alto, calça engomada, camisa de linho, sapato lustrado. Um primo rico. Entrava na sala de leitura no pé do morro. Lá ficava o resto da manhã. Meio dia ele achegava pra dizer pilhéria e poesia. Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” Eu vos direi, no entanto, Que para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... Nem sei como decorei isso. Acho que foi de tanto ele repetir. Era vício, moço. Zuzinha só tinha dois. Poesia e aguardente. O que vem a ser a mesma coisa. Ele mesmo dizia. Quer ouvir uma coisa, moço? Guardo comigo uma folha que desprendeu de um dos cadernos de Zuzinha. Vá me desculpando que a minha leitura é muito ruim.

AVISO

Gente, há mais de um ano atrás postei aqui as duas primeiras partes de um conto intitulado "Ora direis..." Estive muito em dúvida sobre a qualidade das últimas partes, por isso custei tanto a postá-las. Aí vão! Se quiserem não perder o fio da meada, voltem às postagens de janeiro e fevereiro de 2010 para lerem o início do conto. Gostei do resultado. Espero que vocês também gostem! Abraços!

domingo, 3 de abril de 2011

Caleidoscópio dum Instante

Foi num dia em que a chuva
esporas delicadas
prestes a furar o chão
levava humanos a convocar ciclopes
pra reger a dança atrofiada de seus rumos.

Desterrava-se feras das sandálias
em qualquer marquise esquecida
instavam cata-ventos
rumor de asas azuis sem sentido.

Bem no seio da procela
pesadelos escarneciam de nuvens
e de repente
cílios atrás de lunetas
miraram cenhos distraídos
redemoinhos falsetes
a gafieirar de braço
com poeira e papéis de embrulho
endemoniando livros e pés escalavrados
desejo de chofre em escombros
dum átimo de dia
incinerado às avessas.

Sobraram, desse ápice desperdiçado,
vidrilhos de lunetas superpostas
e um coro colorido de ciclopes.